O medo é com a doença e o preconceito, diz médica que acompanha os contaminados

Fernanda Pinto
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Nos últimos dias, a médica Fernanda Pinto, de 35 anos, precisa se isolar da família por algumas horas. Uma rotina que divide em casa, entre os afazeres de uma mãe que precisa cuidar de um bebê de sete meses, e de uma médica, a escolhida pela Prefeitura de Ilhéus, para acompanhar os pacientes com resultado positivo para o Covid-19.

Fernanda tem sido uma espécie de anjo da guarda de quem, neste momento, convive com a solidão. É ela quem conversa, apoia e dá força para 25 pessoas contaminadas pelo novo coronavírus em Ilhéus.

Médica cardiologista, formada há 11 anos pela UESC, Fernanda Pinto fez residência de clínica médica e cardiologia em Salvador.  Começou a fazer parte da secretaria de saúde na última seleção pública feita pelo município. Com os ambulatórios fechados por conta da pandemia, foi relocada  para setor da Vigilância Epidemiológica e é a responsável pelas teleconsultas com pacientes com Covid-19, com resultado confirmado em Ilhéus.

A experiência, define a médica, é transformadora. Logo cedo, ela concedeu esta entrevista exclusiva ao jornalista Maurício Maron, editor do Jornal Bahia Online, enquanto cuidava dos filhos para, em seguida, cumprir a rotina de médica pelo celular e pelo computador. Nesta conversa, falou das experiências, do drama vivido pelas pessoas contaminadas e das feridas que o Covid-19 deixará em nossa sociedade.

Casada, mãe de dois filhos, a cardiologista Fernanda Pinto abre o coração. E revela que jamais será a mesma quando tudo isso passar.

A entrevista é imperdível. Pode, também, ajudar a você a enxergar a solidariedade como o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana.

Confira.

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Como foi aceitar este desafio de conviver virtualmente com pacientes que estão em total isolamento social?

Quando fui chamada para integrar a equipe, comecei a estudar mais profundamente sobre a doença, ler mais. É tudo muito novo para todo mundo. Literalmente, todo o mundo. Os profissionais médicos estão tendo que correr atrás, na verdade, dos relatos dos casos que já existiram. A gente não tem muita coisa na ciência a respeito do vírus. Desde então tenho lido mais sobre o assunto, tentado entender para atender da melhor forma possível os pacientes. Na prática o que se percebe é que a demanda não é só do ponto de vista técnico. Eles têm muitas dúvidas a respeito da parte medica, mas existe também uma necessidade muito grande do acolhimento psicológico, de se sentir amparado, acolhido, acompanhado.

O que mais eles revelam para a senhora?

Esses pacientes têm sido vítimas de preconceito de vizinhos e até de familiares. Eles têm uma maior dificuldade depois da alta médica, em se reinserir no mercado, voltar para o trabalho. As empresas, os órgãos públicos, não estão preparados para receber esses pacientes de volta. Percebo muito isso. Eles sempre pedem algum papel, alguma coisa que prove que já estão curados, pra quando eles forem vistos na rua, voltarem pro trabalho, não precisem ser julgados. Essa é uma dificuldade muito grande que eu tenho percebido na prática.

(Os casos) Vão aumentar. A gente está falando de estatística, de uma doença que tem uma transmissão e progressão geométrica. Então esse aumento de casos já está na expectativa, ele vai acontecer.

O que tem sido mais complicado de a senhora, como médica, lidar diante desta nova realidade?

Existem várias questões que a gente vai identificando na prática. Paciente que algum familiar veio à óbito, por exemplo. Esse paciente não pode ir para o velório por que está isolado. Paciente adulto com filho pequeno e que de uma hora para a outra esse convívio tem que ser rompido dentro de uma mesma casa. Dificuldade de isolamento por questão social é outra situação. Há casas que não têm muitos cômodos. Por exemplo: um só banheiro. Então como fazer esse isolamento desta forma? Então são coisas que a gente está aprendendo juntos. Eu e os pacientes. A gente não tem protocolos estabelecidos. A gente está criando as condições junto com o paciente e cada novidade tem que ser adequada.

Deve ser mesmo muito complicado.

Outra dificuldade – e nisso a sociedade tem que estar atenta – é que estes pacientes de uma hora para a outra recebem orientação de que devem ficar isolados da sociedade. Mas estes pacientes precisam ter acesso a mercado, farmácia... Por isso digo que a comunidade ao perceber que tem um vizinho em isolamento por conta do Covid-19, ao invés de ter preconceito, deveria ter mais acolhimento. Mandar uma mensagem pelo celular, perguntar se está precisando de alguma coisa, fazer uma feira, comprar um remédio e deixar na porta para a família. Esses pacientes não podem ter contato com o mundo externo. Eles precisam de muita coisa que só quem está próximo pode ajudar.

O contato com o especialista acalma. Outro medo considerável é a possibilidade de contágio. Eles temem transmitir para os outros familiares, contactantes. E o terceiro medo é o medo de voltar para a sociedade no momento da alta. Isso tem sido muito marcante.

Com esta experiência que a senhora tem convivido e vivido, qual a grande ferida que a Covid-19 deve deixar nestas pessoas depois que tudo isso passar?

Ninguém será mais o mesmo. As pessoas vão redimensionar as coisas, priorizar coisas que estavam esquecidas e deixar de dar importância a situações que não têm tanto valor assim. A sociedade, o ser humano, estava invertendo valores. E depois desta pandemia, o sentido de vida, da oportunidade de conviver em família, em sociedade, isso tudo vai ser muito valorizado. Pessoas vão perder entes queridos, algumas cicatrizes serão mais fortes em algumas famílias mas, depois disso tudo, as pessoas vão sair melhores depois desta experiência.

O contato que a senhora mantem com estes pacientes é antes, durante ou depois da confirmação?

Acompanho a partir do momento em que ele recebe o diagnóstico positivo. A Vigilância Epidemiológica fornece o resultado, comunica à família e daí então essa relação é comigo. A relação dos pacientes é passada para mim, entro em contato, passo a fazer um telemonitoramento. Acompanho a partir do diagnóstico até a alta.

Ninguém será mais o mesmo. As pessoas vão redimensionar as coisas, priorizar coisas que estavam esquecidas e deixar de dar importância a situações que não têm tanto valor assim. A sociedade, o ser humano, estava invertendo valores.

E qual a sensação deles deste primeiro contato com quem pode ajudar a salvar uma vida?

A teleconsulta já teve oficializada sua permissão neste período pelo Ministério da Saúde e pelo Cremeb (Conselho de Medicina). Então tento fazer de preferência a chamada de vídeo, especialmente na primeira consulta, para o paciente me ver e se sentir mais acolhido. Lógico que isso funciona para pacientes que têm acesso à internet. Os que não têm, faço uma chama normal de telefone.

Qual o primeiro impacto que eles apresentam neste contato?

Primeiro a preocupação com a própria saúde. Muitas notícias estão circulando. Algumas verdadeiras, outras não. O contato com o especialista acalma. Outro medo considerável é a possibilidade de contágio. Eles temem transmitir para os outros familiares, contactantes. E o terceiro medo é o medo de voltar para a sociedade no momento da alta. Isso tem sido muito marcante. O medo da aceitação das pessoas após o retorno ao convívio social.

Pessoas vão perder entes queridos, algumas cicatrizes serão mais fortes em algumas famílias mas, depois disso tudo, as pessoas vão sair melhores depois desta experiência.

A convivência com o drama das pessoas, com o medo da morte do outro lado da linha, o temor pela ressocialização... estas circunstâncias, estas realidades... o que isso tudo vai influenciar na profissional médica depois que tudo isso passar?

Muda muito. Não só na Fernanda médica mas na Fernanda pessoa, mãe, esposa, amiga. A necessidade de ter mais empatia, de tentar se colocar no lugar do outro antes de qualquer tipo de julgamento, a necessidade do acolhimento ao próximo, de estar mais atenta às necessidades do outro. A gente vai vivendo a vida individualmente e vai esquecendo do coletivo, da necessidade do outro.

É mais difícil, complicado, lidar com o idoso ou com a criança contaminada? Há caso de mãe solteira que não tenha com quem deixar o filho em um momento desse?

Até aqui não tem nenhum caso assim. Tem casos de mãe que o parceiro assumiu a missão enquanto ela estiver isolada. Mas de ficar sem ter com quem deixar ainda não teve. Mas pode vir a acontecer. Me preocupa muito mais o idoso pelo fato de ser grupo de risco para as formas graves do Covid-19. Esses me deixam mais tensa.

Digo que a comunidade ao perceber que tem um vizinho em isolamento por conta do Covid-19, ao invés de ter preconceito, deveria ter mais acolhimento. Mandar uma mensagem pelo celular, perguntar se está precisando de alguma coisa, fazer uma feira, comprar um remédio e deixar na porta para a família.

A senhora teme que o número de casos vá aumentar muito?

Com certeza. Vão aumentar. A gente está falando de estatística, de uma doença que tem uma transmissão e progressão geométrica. Então esse aumento de casos já está na expectativa, ele vai acontecer. A gente tem que estar preparado para administrá-lo da melhor forma possível.

A senhora é casada, tem dois filhos, um pequeno, inclusive. Como é depois de testemunhar esses dramas, retornar à condição de administrar a própria vida?

Tenho uma filha de quatro anos e um bebê de sete meses. Estou fazendo este trabalho de casa mesmo. Me recolho num quarto e começo a fazer os atendimentos. Depois disso tenho que respirar fundo, sair do quarto e tentar passar o máximo de normalidade possível para a minha família.

Eles sempre pedem algum papel, alguma coisa que prove que já estão curados, pra quando eles forem vistos na rua, voltarem pro trabalho, não precisem ser julgados. Essa é uma dificuldade muito grande que eu tenho percebido na prática.

Qual a sensação de saber que, após uma conversa, um gesto de apoio e solidariedade, as pessoas passam a estar mais preparadas para enfrentar a doença?

De Gratidão. Eu fico muito grata por estar participando do enfrentamento desta doença. Isso posso te assegurar.